As Raízes da Escritura: A Formação do Cânon Judaico e Suas Divergências

 



O cânon bíblico judaico antes de Jesus (isto é, no período do Segundo Templo, especialmente nos séculos III a.C. a I d.C.) não era um conjunto fixo e definitivo como conhecemos hoje. Havia divergências significativas entre os judeus sobre quais livros eram considerados sagrados, e essas divergências variavam de acordo com região, grupo religioso e até uso litúrgico. A seguir, explico os principais aspectos:


📘 1. Cânon judaico antes de Jesus – havia um cânon fixo?

Resposta curta: Não.
Resposta expandida: O conceito de "cânon" (uma lista fechada de livros sagrados) ainda estava em formação. Havia um núcleo central aceito por praticamente todos os judeus:

  • A Torá (Pentateuco – os cinco livros de Moisés): unanimemente aceitos como sagrados.

Já os Profetas e os Escritos (Nevi’im e Ketuvim) variavam em aceitação.


🕎 2. Havia divergência entre grupos judaicos?

Sim, havia divergência significativa entre grupos como:

a) Fariseus (Palestina – maior influência posterior no Judaísmo Rabínico)

  • Defendiam uma Torá escrita + Torá oral.

  • Provavelmente usavam um cânon similar ao Tanakh atual (24 livros).

  • Valorizavam textos como Isaías, Jeremias, Salmos, Provérbios etc.

b) Saduceus (elite sacerdotal em Jerusalém)

  • Aceitavam apenas a Torá escrita (Pentateuco).

  • Rejeitavam tradições orais e possivelmente outros livros.

c) Essênios (Qumran, perto do Mar Morto)

  • Usavam uma ampla variedade de textos:

    • Além da Torá, Profetas e alguns Escritos, usavam também livros não canônicos, como:

      • Livro de Henoc

      • Jubileus

      • Regra da Comunidade

      • Guerra dos Filhos da Luz

  • Textos de Qumran mostram grande reverência por alguns desses livros.

d) Judeus da Diáspora (especialmente em Alexandria, Egito)

  • Usavam a Septuaginta (LXX) – tradução grega das Escrituras Hebraicas.

  • A LXX incluía livros deuterocanônicos (chamados hoje de "apócrifos" pelos protestantes), como:

    • Sabedoria de Salomão, Eclesiástico (Sirácida), 1 e 2 Macabeus, Tobit, Judite, Baruc, etc.

  • Estes livros eram amplamente lidos e usados, inclusive por cristãos primitivos.


🌍 3. Regiões com judeus e suas variações doutrinárias

Região Grupos judeus principais Características doutrinárias principais
Judeia (Jerusalém) Fariseus, Saduceus, Sacerdotes Ênfase no Templo, Lei e pureza ritual
Qumran (perto do Mar Morto) Essênios (?) Apocalípticos, separatistas, textos próprios
Galileia Fariseus, povo comum Mais acessível às massas, tradições orais
Alexandria (Egito) Judeus helenizados Uso da LXX, sinagogas, influência filosófica grega
Babilônia Comunidade exílica Tradição da Torá forte, mais tarde berço do Talmude Babilônico

📜 4. Quando o cânon judaico foi fixado?

  • O cânon judaico (Tanakh) foi formalizado (não oficialmente) entre o século I e II d.C., depois da destruição do Templo (70 d.C.).

  • O Concílio de Jâmnia (Yavne), por volta de 90 d.C., discutiu critérios canônicos, mas não decretou um cânon fechado.

  • Com o tempo, o Judaísmo Rabínico consolidou os 24 livros do Tanakh, rejeitando os deuterocanônicos usados pelos judeus helenistas e pelos cristãos.


📚 5. Resumo: o cânon judaico antes de Jesus era…

  • Aberto e em formação

  • Com divergências entre:

    • Judeus da Palestina e da Diáspora

    • Grupos como fariseus, saduceus, essênios

  • A Torá era comum a todos

  • Outros livros variavam conforme a teologia e a região



📜 Reflexão

Imagine um mundo onde a pergunta “qual é a sua Bíblia?” gerava tantas respostas quanto “qual é o seu time?”. Pois é, antes de Jesus caminhar pelas estradas empoeiradas da Galileia, os judeus já estavam profundamente envolvidos numa discussão que não caberia num grupo de WhatsApp: afinal, que livros realmente fazem parte da Palavra de Deus?

Naquela época, a única unanimidade era: a Torá é sagrada. O resto? Bem... isso dependia de onde você morava, com quem andava e qual era a sua agenda teológica.

Os fariseus, por exemplo, eram como os bibliotecários zelosos da fé: queriam tradição, lei, e uma interpretação oral como chave de leitura. Já os saduceus, com um certo ar aristocrático, diziam: “Torá e nada mais. O resto? Novidade perigosa.” Os essênios? Estes foram além: montaram sua própria biblioteca secreta no deserto e disseram algo como: “Vamos incluir o Livro de Henoc e o de Jubileus, porque o Apocalipse está chegando – e precisamos estar preparados!”

Enquanto isso, lá em Alexandria, os judeus da Diáspora já liam as Escrituras em grego, a famosa Septuaginta, que continha livros “extras”, mas muito queridos, como Sabedoria de Salomão, Tobias, e Judite. Para eles, quanto mais sabedoria, melhor. (E quem não gostaria de uma heroína como Judite em sua Bíblia?)

É curioso pensar que, mesmo sem um “cânon fechado”, esses textos eram lidos, rezados, debatidos e vividos com intensidade. A ausência de consenso não era um sinal de fraqueza da fé, mas sim uma marca da riqueza do pensamento judaico: um povo que jamais teve medo de discutir, de perguntar, de revisar. Um povo que entendia que, às vezes, a verdade se revela no atrito – e não no consenso apressado.

Quando finalmente o cânon judaico foi estabilizado (por volta do século II d.C.), muito já havia mudado: o Templo havia caído, Roma havia esmagado revoltas, e o Cristianismo nascente começava a trilhar seu próprio caminho, usando muitos dos textos que os judeus decidiram deixar de lado.

E eis aqui uma lição profunda:
Nem toda divergência é ruptura. Às vezes, é apenas o eco de uma verdade que ainda está se revelando. A busca pelo “cânon verdadeiro” foi, na verdade, uma busca por Deus em muitas vozes, muitas páginas, muitas regiões.

Afinal, como já dizia um velho rabino (ou talvez um bom contador de histórias):
🗣️ “Deus falou no Sinai... e o povo ainda está discutindo o que Ele quis dizer.”




📚 Fontes primárias e históricas

1. Textos de Qumran (Manuscritos do Mar Morto)

  • Incluem cópias da Torá, Profetas, Salmos, além de livros não-canônicos como:

    • Livro de Henoc

    • Jubileus

    • Regra da Comunidade

    • Guerra dos Filhos da Luz

  • Fonte: The Dead Sea Scrolls – edições de Geza Vermes e Florentino García Martínez.

2. Septuaginta (LXX)

  • Tradução grega da Bíblia Hebraica usada por judeus da Diáspora.

  • Contém livros deuterocanônicos (ex: Sabedoria, Eclesiástico, 1-2 Macabeus).

  • Fonte: A New English Translation of the Septuagint (NETS), ed. Albert Pietersma & Benjamin G. Wright.

3. Flávio Josefo – Contra Ápio (c. 95 d.C.)

  • O historiador judeu menciona que os judeus reconheciam 22 livros sagrados.

  • Fonte: Contra Ápio I.37–43

4. Talmude Babilônico

  • Discussões rabínicas posteriores sobre o cânon, especialmente em Bava Batra 14b-15a, onde se lista a ordem dos livros do Tanakh.

5. Concílio de Jâmnia (Yavne) – tradição discutida

  • Debate acadêmico sobre se realmente houve um “concílio” formal.

  • Fonte: Jack P. Lewis, What Do We Mean by Jabneh?, Journal of Bible and Religion, 1964.


📖 Fontes secundárias (acadêmicas e teológicas)

6. Lee Martin McDonald – The Formation of the Biblical Canon

  • Uma das principais referências modernas sobre a formação do cânon tanto do AT quanto do NT.

7. James VanderKam – From Revelation to Canon

  • Especialista em Qumran e judaísmo do Segundo Templo.

8. Lawrence H. Schiffman – Reclaiming the Dead Sea Scrolls

  • Explica a visão teológica dos essênios e seus textos canônicos próprios.

9. F. F. Bruce – The Canon of Scripture

  • Obra clássica sobre a formação do cânon, com seção detalhada sobre o judaísmo.

10. John Barton – Holy Writings, Sacred Text: The Canon in Early Christianity

  • Analisa as diferenças regionais entre judeus da Palestina e da Diáspora.


🔍 Observação importante:

A ideia de “cânon fixo” é um desenvolvimento posterior. Durante o período de Jesus, o uso das Escrituras era funcional e fluido, e diferentes grupos judeus tinham diferentes “coleções” que consideravam inspiradas. Só com o tempo (e com o surgimento do Cristianismo) o Judaísmo Rabínico sentiu necessidade de definir um conjunto oficial.



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