Uma Só Fé? Diálogos Sobre a Unidade em Cristo




Introdução

"Rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa e que não haja entre vós divisões." — São Paulo, 1 Coríntios 1:10

A unidade é um dos pilares centrais da fé cristã. Cristo orou para que todos os seus discípulos fossem um, como Ele é um com o Pai (João 17). O apóstolo Paulo insiste que há "um só Senhor, uma só fé, um só batismo" (Efésios 4:5). No entanto, cinco séculos após a Reforma Protestante, o cenário cristão — especialmente dentro das igrejas reformadas — apresenta uma realidade fragmentada, múltipla, e até mesmo contraditória entre si.

Neste trabalho, propomos uma jornada dialógica, um encontro fictício porém profundamente fundamentado entre figuras históricas centrais do cristianismo protestante — como Martinho Lutero, João Calvino e John Wesley — com um dos mais santos e brilhantes doutores da Igreja Católica: São Tomás de Aquino.

Este diálogo visa iluminar, com inteligência, humildade e até um toque de humor sagrado, as profundas tensões teológicas e eclesiológicas entre a visão protestante de "unidade em Cristo" e a compreensão católica da unidade visível e doutrinal da Igreja como Corpo Místico de Cristo.

A pergunta que guiará este diálogo é simples, mas sua resposta ecoa por séculos:

Cristo é Um. A fé é uma. Por que, então, há tanta divisão entre os que dizem crer no mesmo Jesus?


Sumário

Capítulo 1 — A Sala dos Reformadores

Introdução dos personagens protestantes históricos: Martinho Lutero, João Calvino, Ulrico Zuínglio e John Wesley. Cada um apresenta sua visão sobre o que significa estar "unido em Cristo". Uma conversa fraterna e cheia de paixão doutrinária.

Capítulo 2 — Entra o Doutor Angélico

São Tomás de Aquino é introduzido ao diálogo. Com humor fino e grande erudição, começa a questionar as premissas dos reformadores: “A unidade de Cristo pode tolerar tantas interpretações contrárias?” Ele propõe olhar para a doutrina eucarística como espelho da unidade (ou desunião).

Capítulo 3 — Um Cristo, Muitos Corpos?

Debate acalorado (mas respeitoso) sobre a multiplicidade de denominações protestantes. Tomás pergunta: “Se o Cristo é um, como pode seu Corpo ser dividido em milhares de partes que não comungam entre si?”. Lutero tenta justificar, Calvino filosofa, Wesley fala da experiência do coração.

Capítulo 4 — Fé Pessoal x Fé Apostólica

Discussão sobre a natureza da fé. Os protestantes defendem a fé pessoal, direta, sem mediações. Tomás aponta para a fé apostólica, transmitida e guardada pelo Magistério. O conceito de Sola Scriptura é colocado em xeque: “Se cada um interpreta como quer, como saber quem está certo?”

Capítulo 5 — A Ceia que Divide

Foco na Eucaristia: símbolo ou presença real? Um debate profundo sobre o significado da Ceia do Senhor. Tomás expõe a teologia sacramental da unidade. Os reformadores revelam suas divergências internas. A pergunta de Tomás pesa no ar: “Se nem nesta mesa vocês se sentam juntos, onde está a unidade?”

Capítulo 6 — A Ferida da Desunião

Reflexões sobre as consequências históricas e espirituais da fragmentação. Wesley lamenta a proliferação de seitas. Calvino defende a pureza doutrinária. Tomás, com caridade, os convida a olhar para a promessa de Cristo: “As portas do inferno não prevalecerão contra a Minha Igreja.”

Capítulo 7 — Caminhos para a Verdade

Encaminhamentos práticos: é possível restaurar a unidade? O que seria necessário para isso? Os reformadores se perguntam se talvez tenham perdido algo no caminho. Tomás não impõe, mas propõe: “A verdade não é inimiga da liberdade, mas seu fundamento.”

Epílogo — A Oração de Cristo

Uma releitura da oração sacerdotal de João 17. Todos rezam juntos. Mesmo nas discordâncias, reconhece-se a beleza da busca sincera por Cristo. Mas a pergunta permanece: onde está a Igreja una que Ele fundou?



Capítulo 1 — A Sala dos Reformadores

“Se Cristo não está dividido, por que nós estamos?”

A sala era simples, porém acolhedora. Paredes de pedra, um teto de madeira robusta, janelas altas que deixavam entrar uma luz suave, quase celestial. Uma mesa redonda — porque ali não havia tronos nem hierarquias — estava posta no centro, cercada por quatro cadeiras já ocupadas por figuras que, em outros tempos, não teriam partilhado o mesmo púlpito, mas que agora se sentavam como irmãos em busca de uma resposta.

Martinho Lutero, o monge alemão de rosto firme, olhos penetrantes e um certo sarcasmo de nascença, folheava sua Bíblia — aquela mesma que havia traduzido com suor, fé e ousadia.

Lutero:
— “Unidade em Cristo”, meus amigos… É claro que estamos unidos! Não por estruturas humanas, nem por imposições papais, mas pelo Evangelho puro. Sola Fide, Sola Scriptura, Solus Christus! O que nos une é a fé no Cordeiro de Deus, não um nome na porta do templo.

Ele olhou em volta, com aquele sorriso que dizia “me contradiga, se puder”.

João Calvino, com a postura mais contida, mas olhar analítico, ajustava cuidadosamente seu colarinho. Tinha a voz precisa, de quem prefere lógica a retórica.

Calvino:
— Concordo, irmão Lutero, que a fé em Cristo nos une. Mas não basta proclamar o nome de Jesus — é preciso ordenar a doutrina segundo as Escrituras. A verdadeira unidade é doutrinária. Sem verdade, a união é sentimentalismo. A Igreja, mesmo invisível, é marcada pelos eleitos que vivem em santidade e reta interpretação da Palavra.

Lutero fez uma careta, mas se conteve. Já haviam discutido muito no passado. Melhor manter a paz — por ora.

Ulrico Zuínglio, o suíço vigoroso e direto, parecia menos preocupado com os detalhes finos da doutrina e mais com o zelo pelo que julgava ser o coração do Evangelho.

Zuínglio:
— Meus caros, a unidade que Cristo deseja é espiritual. É a comunhão invisível dos crentes verdadeiros. Não precisamos concordar em tudo para estarmos unidos. O que importa é a vida vivida no Espírito de Cristo, não se o pão é símbolo ou substância.

Calvino revirou os olhos discretamente. Lutero pigarreou alto. Sabia aonde aquilo ia.

Lutero:
— Ah, Zuínglio... vamos começar com a Eucaristia já? Você sabe bem que nessa “espiritualização”, corremos o risco de perder o próprio Cristo!

Zuínglio (sorrindo):
— Ou de idolatrar um pedaço de pão.

John Wesley, o mais novo entre eles, vestia um casaco escuro e tinha um brilho nos olhos que vinha tanto da razão quanto da emoção. Ele se inclinou, com voz doce, quase pastoral.

Wesley:
— Irmãos, talvez a unidade em Cristo esteja mais ligada ao amor ativo do que à precisão doutrinária. “Se alguém ama a Deus, esse é conhecido por Ele”, como diz o apóstolo. A fé viva — aquela que se expressa pelo amor — é o elo da verdadeira unidade. Eu vejo irmãos salvos até entre os católicos, se viverem sinceramente em Cristo.

Todos se entreolharam. Lutero arqueou uma sobrancelha. Calvino franziu o cenho.

Calvino:
— Isso soa perigosamente relativista.

Wesley:
— Ou perigosamente semelhante ao coração de Cristo.

Lutero:
— Wesley, você tem um coração de ouro, mas cuidado para não trocá-lo por uma bússola defeituosa. O amor sem doutrina vira confusão.

Zuínglio:
— E a doutrina sem amor vira tirania.

O silêncio tomou a sala por um momento. Não um silêncio tenso, mas reflexivo. Eles sabiam que, embora todos proclamassem a Cristo como centro, suas interpretações divergiam. Ainda assim, ali estavam, unidos pelo desejo — mesmo que conflitante — de honrar a verdade do Evangelho.

Wesley, suavemente:

— Talvez a nossa divergência seja, de algum modo, parte do mistério. Mas me pergunto: Cristo orou para que fôssemos “um”. Que unidade é essa que não se vê?

Lutero (resmungando):
— Uma que talvez só Deus mesmo consiga enxergar...

Calvino:
— Ou que exige uma restauração mais profunda do que admitimos.

Na sala, uma brisa leve soprou pela janela. Seria apenas vento ou o sussurro do Espírito? Ninguém disse. Mas pela primeira vez, todos olharam para a mesma Bíblia no centro da mesa. E por um momento, todos ficaram calados.



Capítulo 2 — Entra o Doutor Angélico

“Unidade é mais do que boa intenção — é verdade encarnada.”

As paredes ainda ressoavam os ecos do capítulo anterior. Os reformadores permaneciam ao redor da mesa, cada um com sua Bíblia aberta e suas convicções expostas. A conversa havia esquentado, mas uma certa reverência pairava no ar. Afinal, sabiam que estavam pisando em terreno sagrado — o terreno da verdade.

Foi então que ouviram passos.

Lentos, firmes, quase musicais.

A porta de madeira se abriu suavemente e, entrando com a serenidade de um monge que já havia conversado longamente com Deus antes de falar com os homens, apareceu São Tomás de Aquino.

Descrição da entrada

Robe dominicano, cabelos tonsurados, expressão gentil porém penetrante. Trazia consigo um pequeno volume da Suma Teológica, e um olhar que parecia atravessar não apenas os séculos, mas as certezas mal colocadas. Curvou-se levemente em saudação e falou:

Tomás de Aquino:
— Pax vobis, irmãos em Cristo. Vim por causa de uma oração feita há dois mil anos... “Pai, que todos sejam um”.

Lutero se recostou na cadeira, desconfiado.

Lutero:
— Ah, o famoso Doutor Angélico. Bem-vindo. Se veio para nos chamar de hereges, entre na fila. Está longa.

Tomás (sorrindo com leveza):
— Não vim para acusar, mas para perguntar. E como aprendi com Aristóteles: “Uma boa pergunta pode ser mais iluminadora que mil afirmações.”

Ele se sentou, abriu sua Suma calmamente, e disse:

"A unidade do Corpo de Cristo, como a da alma racional, requer uma forma única e não múltiplas que se contradizem."
(S.Th., III, q.80, a.4)

Tomás:
— Se o Corpo é um, como podem coexistir, com igual legitimidade, múltiplas doutrinas sobre esse mesmo Corpo? Será que Cristo tolera em sua Esposa a confusão?

Wesley tentou suavizar:

Wesley:
— Acreditamos que a unidade verdadeira está na fé no Salvador, não necessariamente nos detalhes doutrinários.

Tomás:
— Ah, querido irmão Wesley... mas os “detalhes doutrinários” são como os nervos do corpo: invisíveis à primeira vista, mas se cortados, paralisam os membros. Afinal, o Cristo verdadeiro não é apenas objeto de fé, mas também de doutrina. Ele disse: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim”. Qual Cristo vocês estão oferecendo em vossos cálices?

O Silêncio Eucarístico

O ambiente mudou. Não era mais uma sala de debate, mas quase um templo. A mesa, onde antes palavras se cruzavam, agora era vista sob nova luz. Tomás olhou para ela como se ali estivesse o altar.

Tomás:
— Irmãos, vejamos: o sacramento da Eucaristia é o sacramento da unidade. Como pode haver verdadeira comunhão, se naquilo que deveria ser o elo mais profundo — o próprio Corpo e Sangue do Senhor — vocês divergem radicalmente?

Lutero se remexeu. Era terreno espinhoso.

Lutero:
— Eu jamais neguei a presença real. Cristo está, sim, presente “in, cum et sub pane”. Os demais, infelizmente, preferem metáforas...

Zuínglio ergueu a sobrancelha:

Zuínglio:
— O Senhor disse: “Fazei isto em memória de mim”. Não “fazei isto porque eu virei fisicamente ao pão.”

Tomás (com compaixão quase paterna):
— Mas, caro Ulrico, acaso o mesmo Senhor que disse “Isto é o meu corpo” precisava de tradutores? A Palavra que criou o universo não saberia se expressar claramente?

Zuínglio (tentando argumentar):
— São símbolos, sinais espirituais. Cristo está no céu, não no pão.

Tomás:
— Então o céu perdeu o seu Senhor por um instante quando Ele nasceu em Belém? Se Deus pode se encarnar numa Virgem, por que não pode se fazer presente sob as espécies do pão?

Calvino tentou mediar:

Calvino:
— Talvez o ponto seja: a presença é real, sim, mas espiritual. A fé é o canal. Sem ela, o pão é só pão.

Tomás (afiado):
— Então a fé cria o Cristo? Ora, a fé nos une a Ele, mas não o gera. A Eucaristia é eficaz por si, pois é Ele — e Ele é Deus. A realidade objetiva precede nossa crença. Não comungamos com ideias, mas com uma Pessoa.

Wesley, tocado, murmurou:

Wesley:
— E se Ele estiver mesmo ali… e nós estivermos apenas lembrando?

Tomás olhou-o com ternura:

Tomás:
— Essa é a ferida da fragmentação. Uns veem um símbolo, outros um sacramento. Mas há apenas um Cristo. Ele não muda de substância de cidade em cidade. A unidade da fé exige uma unidade sacramental.

Lutero coçou a cabeça. Calvino tamborilou os dedos. Zuínglio ficou em silêncio — pela primeira vez. Tomás, então, abriu novamente sua Suma:

“O sacramento da Eucaristia é o vínculo da caridade e o sinal da unidade eclesial. Aquele que comunga de modo indigno, fere o corpo não apenas por pecado pessoal, mas pela profanação da unidade."
(S.Th., III, q.82, a.2)

Tomás:
— Minhas perguntas são simples, irmãos:

  • Que unidade há entre vós, se não comungais da mesma ceia?

  • Que Cristo é esse que se deixa fragmentar por cada nova interpretação?

  • Se a verdade é una, e Cristo é a Verdade... por que tantas versões?

O silêncio agora era reverente. Os reformadores, orgulhosos de sua busca sincera, sentiam, talvez pela primeira vez, o peso da fragmentação não como conquista contra o erro, mas como ferida na carne do próprio Cristo.

Tomás concluiu com suavidade:

Tomás:
— Não proponho dominação, mas meditação. Pois onde há unidade, ali está a Esposa. Onde há confusão, talvez esteja apenas a boa intenção.

Ele então fechou a Suma.



Capítulo 3 — Um Cristo, Muitos Corpos?

“Cristo não se contradiz, nem se multiplica em doutrinas rivais. Sua Esposa é una, ou não é Sua.”

A sala dos reformadores, agora mais iluminada pela presença do Doutor Angélico, tornava-se um verdadeiro concílio de almas inquietas e sedentas da verdade. Já haviam tocado na Eucaristia, a “âncora da unidade”. Mas Tomás, paciente como quem prepara um remédio difícil, queria chegar mais fundo.

Ele pôs-se de pé, com as mãos cruzadas sobre o peito. Seu olhar não era severo, mas carregado de um tipo de compaixão que só quem vê o erro como uma tragédia — e não como crime — pode ter.

Tomás de Aquino:
— Meus irmãos, falamos de Cristo. De sua presença. De sua ceia. Mas permitam-me agora perguntar algo mais radical... Se o Cristo é um, como pode seu Corpo ser dividido em milhares de partes que não comungam entre si?

Ele caminhou em direção à janela e apontou — não para uma paisagem específica, mas como quem aponta para os séculos.

Tomás:
— Olhem lá fora. Em uma única rua, cinco igrejas diferentes. Cinco nomes distintos. Cinco doutrinas contraditórias. Todas dizem pregar a Cristo, mas não comungam o mesmo pão, nem professam a mesma fé. Acaso Cristo foi dividido?

Lutero (com um suspiro):
— A divisão não foi escolha, mas necessidade. Quando Roma nos negou o Evangelho, fomos forçados a andar. A Escritura — não a instituição — é a nossa unidade.

Tomás:
— Mas se cada um interpreta a Escritura como bem entende, e o Espírito sopra em direções divergentes, como se reconhece o corpo de Cristo? O mesmo Espírito pode ensinar doutrinas opostas?

Calvino (com tom reflexivo):
— A Igreja invisível é una. Deus conhece os seus. As instituições humanas são falhas — mas a verdadeira unidade está no coração dos eleitos. A diversidade visível não nega a eleição invisível.

Tomás (calmamente):
— Então a Igreja visível de Cristo — aquela que Ele prometeu que as portas do inferno não prevaleceriam contra — é uma ilusão? Uma fachada? A promessa do Senhor falhou, e só os invisíveis a compreendem?

Wesley (com mansidão):
— Não podemos ignorar, São Tomás, que a fé é mais do que doutrina. Eu já vi corações verdadeiramente tocados por Cristo em lugares muito simples. Em tendas, em lares humildes, até em confissões diferentes da minha. O Espírito age... mesmo fora dos esquemas humanos.

Tomás (com carinho):
— E eu não nego a misericórdia de Deus. Mas unidade não é emoção. É verdade. Se há um só Senhor, uma só fé, um só batismo — como pode a esposa de Cristo cantar com tantas vozes dissonantes? E o que dizer dos que ensinam doutrinas contrárias entre si, mas invocam o mesmo nome?

O Coração do Escândalo

Tomás:
— Um diz que o batismo salva, outro que é apenas símbolo. Um ensina que a Ceia é Cristo presente, outro que é apenas memorial. Uns dizem que se pode perder a salvação, outros que jamais se perde. Uns creem na predestinação absoluta, outros no livre-arbítrio pleno. Acaso o Cristo é um camaleão doutrinário?

Lutero (mais exaltado):
— Mas Roma também errou! Indulgências! Superstições! Idolatrias! Não nos acuse de divisão sem reconhecer a culpa da vossa unidade corrompida!

Tomás (sem se alterar):
— Eu não defendo os erros. Mas uma mãe doente ainda é mãe. Quando há febre no corpo, o remédio se aplica. Vocês, no entanto, decidiram cortar os membros e construir novos corpos. Cada novo grupo se proclama “a verdadeira igreja” — e todos discordam entre si.

Calvino:
— Mas não temos papa, nem magistério infalível. Somos guiados pela Palavra!

Tomás:
— E quem interpreta a Palavra? A criança ou o mestre? A Escritura é lâmpada, mas precisa de olhos treinados para lê-la sem tropeçar. De que serve a lâmpada se cada um a empunha numa direção?

Wesley (quase em súplica):
— Mas há amor! Há frutos! Há conversões sinceras!

Tomás:
— E também houve entre hereges antigos. Mas isso nunca bastou para validar a doutrina. Até Judas beijou Jesus.

O ambiente ficou denso. Não hostil — mas profundamente confrontador.

Uma metáfora final

Tomás (concluindo):
— Imaginemos um espelho. Um só espelho, limpo, inteiro — reflete o rosto do Cristo com clareza. Mas se o quebramos, e cada caco reflete um pedaço do rosto... ainda é Cristo, sim. Mas deformado. E cada caco diz: “Eu sou o verdadeiro reflexo”.

Ele os olhou com olhos quase marejados:

Tomás:
— Talvez Deus tenha piedade até dos cacos. Mas não foi assim que Ele sonhou sua Esposa.



Capítulo 4 — Fé Pessoal x Fé Apostólica

“A fé que salva não nasce do eu — nasce da Igreja. Vem de Cristo, mas passa por seus apóstolos.”

Já se passavam horas desde que Tomás havia chegado à sala dos reformadores. O ambiente antes cordial agora estava carregado de tensão saudável, aquela que só existe entre almas que buscam a verdade com honestidade. O tema da unidade havia ferido fundo — não por agressão, mas por revelação. E agora, o próximo passo era inevitável: como se crê? E em quem se crê?

Foi Lutero quem deu o tom.

Lutero:
— Chega de tradição. A fé verdadeira é aquela que nasce do encontro direto com a Palavra. A Escritura é clara, suficiente e soberana. “Sola Scriptura”! A alma diante de Deus, sem muletas humanas.

Tomás de Aquino (erguendo os olhos com gentileza):
— De fato, a fé é pessoal. Mas ela nunca foi privada. A fé é uma lâmpada acesa no íntimo, mas que recebe o fogo de outra vela — a dos apóstolos. Quem acendeu tua vela, irmão Lutero?

Lutero hesitou.

Tomás (calmamente):
— Se a Escritura é suficiente por si, por que foi preciso esperar séculos até que surgisse alguém para dizer isso? Por que os apóstolos nunca escreveram: “Cada um leia por si e decida sua fé”?

Calvino:
— Porque eles estavam vivos, podiam falar. Hoje temos seus escritos, inspirados por Deus.

Tomás:
— Sim, os escritos são sagrados. Mas quem decidiu quais escritos são inspirados? Quem reuniu os livros? Quem excluiu os espúrios? Foi a própria Bíblia que se canonizou?

Um silêncio incômodo caiu.

Tomás (com voz pausada):
— A Escritura não caiu do céu encadernada em couro. Foi a Igreja — com o sopro do Espírito — que discerniu os textos apostólicos. Se confiais na Escritura, confiais, ainda que indiretamente, no juízo da Igreja.

Wesley (tentando mediar):
— Mas a fé verdadeira é aquela que transforma o coração! Eu não precisei de um magistério para sentir o fogo de Deus arder em meu peito!

Tomás (sorrindo com ternura):
— O coração é ardente, mas também enganoso. O mesmo calor que consome a palha, pode incendiar uma casa por descuido. Sentir é importante. Mas saber no que se crê é ainda mais.

Ele abriu um pequeno volume da Suma e leu:

"A fé é um ato do intelecto, que assente à verdade divina por comando da vontade, movida por Deus mediante a graça."
(S.Th., II-II, q.2, a.9)

Tomás:
— Não basta crer. É preciso crer no que é verdadeiro. A fé salvadora não é “qualquer crença sincera”, mas a adesão ao que os apóstolos ensinaram — e que a Igreja guardou com zelo e lágrimas.

Lutero (com firmeza):
— Mas Roma corrompeu essa fé! Adições humanas! Dogmas tardios! Papado, indulgências, mariolatria!

Tomás:
— Se uma casa precisa de reparos, não se abandona o terreno. Corrige-se o que rachou, mas se preserva o fundamento. Vós, porém, demoliram o edifício — e agora, cada um constrói o seu.

O Problema da Interpretação

Tomás aproximou-se da estante e retirou um volume antigo. Era um Evangelho.

Tomás:
— Digam-me: o que significa “Este é o meu corpo”? O pão é ou não é? O que quer dizer “sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”? É Pedro, ou é a fé de Pedro? Ou é metáfora? E quando Paulo fala de batismo que salva — está sendo simbólico ou literal?

Calvino:
— Cada crente, guiado pelo Espírito, pode interpretar.

Tomás (com um arquejo sutil):
— Ah, então temos milhões de intérpretes — e nenhuma certeza. E quando discordam entre si? O Espírito se contradiz? Ou será que se escutam a si mesmos?

Ele fez uma pausa dramática.

Tomás:
— Não negamos a Escritura. Antes, a veneramos. Mas toda escritura precisa de intérprete autorizado. Como o eunuco da Etiópia disse a Filipe: “Como entenderei, se ninguém me explica?”

Wesley (quase murmurando):
— Então a fé não nasce da leitura pessoal?

Tomás:
— A fé nasce da pregação — e a pregação é da Igreja. “Fides ex auditu”, diz São Paulo. Ouvir quem? Um pregador qualquer? Ou aqueles enviados, ordenados, enraizados na sucessão apostólica?

O Fundamento: Apostolicidade

Tomás ergueu uma cruz simples de madeira.

Tomás:
— Esta é a fé apostólica. A cruz é a mesma. Mas quando cada um a carrega em direção oposta, não se avança — se divide. E divisão não é fruto do Espírito, mas sinal de orgulho.

Lutero (em tom mais contido):
— Mas então... só a Igreja de Roma detém a verdade?

Tomás (com humildade, mas firmeza):
— Não digo “Roma” por causa da cidade. Digo Igreja Una, porque é a que Cristo fundou sobre os apóstolos. A fé verdadeira é aquela recebida, não inventada. Transmitida, não improvisada. Se a fé precisa ser redescoberta a cada geração, ela não é fé — é opinião.



Capítulo 5 — A Ceia que Divide

“Onde o Corpo está, aí deve estar também o coração. Mas se os corações não concordam sobre o Corpo, quem está realmente à mesa?”

A sala estava mais silenciosa do que nunca. O debate anterior sobre fé e autoridade havia deixado todos reflexivos. Mas Tomás sabia que ainda havia uma pedra angular que precisava ser tratada: a Ceia do Senhor, o ponto em que, historicamente, os próprios reformadores não conseguiram permanecer unidos. E então, com a serenidade de um médico que toca onde dói, ele lançou a pergunta:

Tomás de Aquino:
— Meus irmãos, se há um só Senhor, e uma só fé... por que não há uma só mesa?

Ele olhou para Lutero, depois para Calvino, e por fim para Wesley.

Tomás:
— A Ceia do Senhor é o sacramento da unidade. Mas entre vós, é o sinal da separação. Se nem aqui se sentam juntos, onde está a comunhão do Corpo?

O Prato Quebrado da Reforma

Lutero (erguendo-se):
— Eu creio na presença real! Não sou dos que dizem que é só um símbolo. O pão é o Corpo, o vinho é o Sangue! Cristo está ali, verdadeiramente, ainda que de forma sacramental.

Zuínglio (com veemência):
— Não, Martinho! Isso é papismo disfarçado! A Ceia é memória! Uma proclamação da morte de Cristo. Ele está presente espiritualmente — sim — mas não fisicamente. “Isto é o meu corpo” é linguagem figurada!

Calvino (tentando intermediar):
— Há uma presença, sim, mas espiritual e eficaz. Cristo está no céu à direita do Pai. Ele não desce ao pão. Antes, pela fé, nós somos elevados espiritualmente a Ele. A Ceia é comunhão real — mas não carnal, como Roma ensina.

Wesley (pensativo):
— Eu me aproximo da mesa com temor e reverência. Não creio na transubstanciação, mas também não ouso dizer que é só um memorial. Sinto ali a graça de Deus, e creio que Cristo visita o crente em espírito.

Tomás, em silêncio até então, estendeu sobre a mesa um pequeno cálice e uma hóstia simples.

Tomás:
— E eu vos pergunto: quem está aqui? Se é apenas símbolo, por que a reverência? Se é só memória, por que a adoração de tantos santos? Se é espiritual, por que as palavras de Cristo são tão literais?

Ele então cita:

“Isto é o meu corpo... quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna.” (Jo 6,54)

Tomás:
— Acaso o Senhor estava brincando com metáforas, num momento tão grave?

A Teologia da Unidade

Tomás (com voz firme e amorosa):
— A Eucaristia não é só presença. É presença eclesial. Onde está o Corpo de Cristo, aí está a Igreja. Onde se parte o Pão, aí se reconhece a comunhão. Mas se vocês não partilham o mesmo Corpo — como podem dizer que são um só Corpo?

Ele aponta para os reformadores, um a um.

Tomás:
— Lutero, tu não te sentas à mesa de Zuínglio.
Calvino, não consentes com Lutero.
Wesley, vês a graça, mas não a substância.

Tomás:
— Entre vós, a mesa virou trincheira. E esta deveria ser a mesa da reconciliação!

Um Apelo Profundo

Tomás se aproxima da hóstia e a ergue, como quem contempla algo muito além da matéria.

Tomás:
— Meus irmãos, se Cristo está aqui — realmente — como ousamos tratá-Lo como símbolo? Se Ele é a nossa unidade, por que O invocamos em liturgias que nos separam?

Ele olha profundamente nos olhos de Calvino.

Tomás:
— Se a Ceia não nos une, será que compreendemos Aquele que está nela?

Zuínglio (com franqueza):
— A Escritura é clara! Cristo subiu aos céus, não pode estar no pão!

Tomás (com leve sorriso):
— E Deus não pode estar onde quer? O Verbo não se fez carne? O eterno não entrou no tempo? Por que não poderia o Cristo tornar-se presente sob a aparência do pão?

Lutero (murmurando):
— Hoc est enim corpus meum... Isto é o meu corpo...

Tomás se aproxima e conclui com voz suave, mas firme como pedra:

Tomás:
— A Ceia do Senhor deveria ser aquilo que une os irmãos. O altar deveria ser o centro da unidade visível da Igreja. Mas se cada grupo parte um pão distinto, e crê de forma oposta... não há uma Ceia, mas muitas. E Cristo não tem muitos corpos.

Um silêncio pesado caiu sobre todos. Não de raiva — mas de revelação. As palavras de Tomás, como lanças de amor e razão, haviam tocado um ponto doloroso: os reformadores não comungavam entre si. Nem à mesa, nem na doutrina da mesa.



Capítulo 6 — A Ferida da Desunião

“Toda ferida sangra. Mas nem toda ferida é morta. Algumas, com graça e arrependimento, cicatrizam.”

A chama das velas lançava sombras longas pela sala. Já era noite. A discussão sobre a Eucaristia havia deixado os corações em silêncio, como quem percebe que certas dores não se resolvem apenas com lógica, mas com oração.

Foi John Wesley quem quebrou o silêncio.

Wesley (com voz pesarosa):
— Irmãos, quando comecei a pregar, não queria fundar igreja alguma. Só desejava reacender o amor por Cristo, o zelo pela santidade. Mas... — fez uma pausa — hoje vejo: nas ruas de Londres, de Bristol, de Manchester... há dezenas de grupos, todos “seguindo a Bíblia”, mas cada um por uma estrada diferente.

Ele abaixou a cabeça.

Wesley:
— Essa não era a minha intenção. Não era a de nenhum de nós. Mas foi o que se tornou. Fragmentação.

Calvino (mais contido):
— As divisões são, sim, dolorosas. Mas às vezes, necessárias. A verdade vale mais que uma falsa paz. A doutrina precisa ser guardada, ainda que ao custo da separação.

Tomás de Aquino (com olhar misericordioso):
— Separar-se por amor à verdade... parece nobre. Mas quem define o que é “a verdade”, quando todos dizem tê-la? A espada da pureza doutrinal, se empunhada sem caridade e sem autoridade, não corta apenas os erros — mutila o Corpo.

Ele se aproximou da janela e apontou para o mundo lá fora.

Tomás:
— A vossa fé produziu missionários, mártires, cânticos belíssimos. Mas também... confusão. Em cada esquina, uma doutrina. Em cada púlpito, um “Espírito” diferente. Em cada crente, uma interpretação.

Lutero (já mais calado):
— Eu quis corrigir abusos. Não criar Babel.

Tomás (com ternura):
— E, no entanto, criaram. Cada divisão gerou mais divisões. A unidade que Cristo pediu ao Pai — “para que todos sejam um” — foi dilacerada por homens bem-intencionados, mas sem mandato apostólico.

As Chagas do Corpo

Wesley (com olhos úmidos):
— Às vezes me pergunto: se alguém entrasse hoje no meio protestante e perguntasse, “Onde está a Igreja de Cristo?”, qual de nós teria coragem de dizer “Aqui”? E com que autoridade?

Tomás (citando João 17):
— “Pai, que eles sejam um, como Nós somos um...” Cristo orou assim na noite em que foi entregue. Ele sabia que o inimigo atacaria justamente a unidade. Pois se o Corpo está dividido, como manifestará ao mundo a glória do Pai?

Calvino (erguendo a voz levemente):
— Mas Roma se corrompeu! Idolatrias, superstições, abusos! O que restava a nós senão romper?

Tomás (sereno, mas direto):
— Roma é mãe ferida, não mãe morta. Mesmo nos tempos de pecado, a Igreja não deixou de ser a Igreja. Como Israel, que pecou, mas ainda era o povo escolhido.

Ele fez uma pausa, e então citou:

“As portas do inferno não prevalecerão contra a Minha Igreja.” (Mt 16,18)

Tomás:
— Ou cremos que essa promessa é verdadeira — e eterna — ou admitimos que Cristo falhou.

O Apelo da Ferida

Tomás caminhou entre os reformadores com passos lentos. Seu rosto não era de triunfo, mas de compaixão.

Tomás:
— Meus irmãos... a ferida da desunião é real. Está no Corpo de Cristo, mas também em vossas almas. Vós lutais pela verdade — mas, separados do corpo visível, quem confirma que é verdade o que pensais?

Wesley (num sussurro):
— Fomos bons filhos... mas órfãos.

Tomás:
— Mas o Pai ainda chama. A Mãe ainda chora. A Esposa ainda espera. A Igreja Una ainda está de pé, com seus pastores, sua doutrina, seus sacramentos. Mesmo ferida, ela é a Arca. E a arca não foi feita para os justos, mas para os que reconhecem que fora dela há somente o dilúvio.

Lutero (após longa pausa):
— A ferida da desunião... é também a minha. Cada noite em que celebrei a Ceia sem Pedro... sangrei por dentro.



Capítulo 7 — Caminhos para a Verdade

“A verdade não é um grilhão. É uma luz. E quem a segue, mesmo ferido, encontra liberdade.”

A noite já ia alta. A chama da última vela parecia hesitar, como que exausta pela intensidade dos diálogos. Mas nenhum dos presentes queria partir ainda. Algo maior havia se acendido — e não vinha da vela.

São Tomás, com as mãos entrelaçadas sobre o peito, falou com calma e doçura:

Tomás de Aquino:
— Meus irmãos, muito já foi dito. Feridas foram expostas. Paixões, confessadas. Argumentos, trocados. Mas agora pergunto: é possível curar essa ferida? É possível restaurar a unidade?

Um silêncio respeitoso tomou a sala.

Wesley (com os olhos marejados):
— Quando olho para trás, percebo que, no zelo de reacender o fogo, talvez tenhamos derrubado os pilares da casa. A fé pessoal... sim, ela é preciosa. Mas talvez tenhamos nos afastado da fé comum. A fé dos santos, dos mártires, dos concílios. Perdemos algo... e não sei se sabemos como recuperar.

Calvino (cruzando os braços):
— Unidade... sim, mas sem verdade, ela é mera aparência. Para restaurar a comunhão, não basta sentimento — é preciso concordância na doutrina. E como chegar a isso quando cada grupo interpreta a Escritura de modo diverso?

Lutero (pensativo):
— Eu disse certa vez: “A minha consciência está cativa à Palavra de Deus.” Mas hoje percebo que a consciência, sem direção legítima, pode se tornar um juiz tirano — ou cego. Milhões hoje se dizem ‘cativos da Palavra’... mas cada um preso a uma cela distinta.

Tomás então se levanta. Com uma paz que silencia sem forçar, ele se dirige ao centro da sala.

Tomás:
— A unidade não se impõe, se propõe. A verdade não grita, mas atrai. E ela não é inimiga da liberdade... ela é o seu fundamento. Pois uma liberdade sem verdade se converte em escravidão da própria vontade.

Os Três Pilares

Tomás (calmamente):
— Se desejam restaurar a unidade, há três pilares a considerar:

  1. Doutrina Comum:
    — Não qualquer doutrina. Mas aquela que vem dos apóstolos, preservada com fidelidade, reconhecida pela Igreja em concílios, defendida por santos. A fé não começou com nenhum de vós — mas vos foi transmitida.

  2. Sacramentos Verdadeiros:
    — Não símbolos apenas, mas meios eficazes da graça. A Eucaristia, o batismo, a confissão... são realidades operantes. Cristo age nelas. E fora delas, vive-se à margem da plenitude.

  3. Autoridade Apostólica:
    — Não uma tirania, mas um serviço. O Magistério da Igreja, em comunhão com o sucessor de Pedro, é bússola no mar das interpretações. Sem Pedro, todos se tornam seus próprios capitães — e naufragam.

Wesley:
— Mas... Tomás... e o Espírito Santo? Ele não guia cada alma?

Tomás:
— Sim, guia. Mas nunca contra o Corpo. O mesmo Espírito que habita o coração do fiel é o que conduz a Igreja — não de forma privada, mas pública, visível, histórica.

Um Passo Realista

Calvino (refletindo):
— Seria então... uma espécie de retorno? Uma reconciliação?

Tomás (gentilmente):
— Não um retorno infantil ou cego. Mas um ato de maturidade e humildade. Como o filho pródigo que, mesmo conhecendo os campos, reconhece que só na casa do Pai há pão verdadeiro.

Lutero:
— E se encontrarmos erro em Roma?

Tomás:
— Corrijam, com caridade e obediência. A Igreja é viva — ela pode reformar-se de dentro, como já o fez tantas vezes. Mas fora dela, reforma se torna revolução... e revolução, fragmentação.

Últimas Palavras

Wesley:
— Talvez... ainda haja tempo.

Tomás (sorrindo com esperança):
— Enquanto houver fé e arrependimento, sempre há tempo. A verdade não tem pressa, pois ela é eterna. Mas ela chama... e quem a ouve, encontra repouso.

Os reformadores se entreolham. Pela primeira vez, não como fundadores de linhas distintas, mas como filhos de uma mesma promessa. A chama da vela finalmente se apaga — não por abandono, mas porque a luz agora está dentro deles.



Capítulo Final — Onde Está a Igreja de Cristo?

“A verdade não precisa ser reinventada. Ela precisa ser reencontrada.”

A sala já não era a mesma. As paredes pareciam mais próximas, mais íntimas. O ambiente, mais sagrado. A discussão dera lugar à contemplação. Já não falavam para vencer, mas para compreender.

Tomás de Aquino permanecia em pé, como se convidasse todos a se erguerem também. A questão, que até agora fora periférica, finalmente ganha nome e peso:

Tomás:
— Irmãos, se há um só Cristo, uma só fé, um só batismo... onde está a Sua Igreja?

Ele fez uma pausa. E então, como professor que sabe que sua resposta é menos importante do que conduzir à verdade, começou a propor evidências, com simplicidade e clareza.


1. Sucessão Apostólica Ininterrupta

Tomás:
— Desde Pedro até o Papa de hoje, há uma linha ininterrupta de bispos ordenados pelas mãos dos apóstolos e seus sucessores. Não por homens que se auto-proclamaram pastores, mas por legítima imposição de mãos. A autoridade na Igreja não é inventada — é transmitida.

“Como o Pai me enviou, assim eu vos envio... quem vos ouve, a Mim ouve.” (Jo 20,21; Lc 10,16)


2. Fidelidade Doutrinal Através dos Séculos

Tomás:
— Os dogmas católicos, ainda que amadurecidos no tempo, são os mesmos proclamados nos concílios antigos: a Trindade, a divindade de Cristo, a virgindade de Maria, a Eucaristia como presença real. A fé da Igreja não muda — aprofunda-se.

“A fé que foi entregue de uma vez por todas aos santos.” (Jd 1,3)


3. Universalidade (Catolicidade)

Tomás:
— A Igreja Católica está em todos os continentes, fala todas as línguas, acolhe todos os povos. O que era verdade no século I continua sendo no século XXI. Não depende de um homem ou de uma cultura. Ela é de todos, para todos, em todos os tempos.

“Ide e fazei discípulos de todas as nações.” (Mt 28,19)


4. Unidade Visível

Tomás:
— Os católicos do mundo inteiro creem o mesmo, celebram os mesmos sacramentos, seguem o mesmo magistério. Apesar de línguas, raças e culturas diferentes, formam um só corpo.

“Para que todos sejam um... para que o mundo creia.” (Jo 17,21)

Ele olhou para os reformadores e perguntou, com sincera dor:

Tomás:
— Vossas comunidades podem dizer o mesmo? Uma doutrina, uma celebração, uma autoridade? Não. Então como podeis dizer que sois a Igreja una que Cristo fundou?


5. Perseguição e Santidade

Tomás:
— Nos séculos, reis caíram, impérios ruíram... mas a Igreja permaneceu. Perseguida, caluniada, ferida — mas viva. E seus maiores frutos não foram vitórias políticas, mas santos. Homens e mulheres que, por graça, se tornaram ícones de Cristo.

“Vede como morrem os cristãos!” — dizia-se nos primeiros séculos.


Lutero, calado, olhava para o chão. Calvino apertava os lábios, pensativo. Wesley, de olhos fechados, respirava fundo.

Tomás (mais brando):
— Irmãos... não peço que neguem tudo que viveram. Nem que deixem para trás tudo que foi sincero. Mas peço que considerem: se a verdade for uma, e a Igreja for una — talvez ela já esteja aí, desde o princípio. E vós é que dela vos afastastes.

Silêncio. Denso. Sagrado.


Epílogo — A Oração de Cristo

Uma releitura de João 17: a oração que ainda ecoa.

O grupo, em silêncio, ajoelha-se. A luz da manhã começa a entrar pelas janelas. A chama da divisão ainda arde nos corações, mas agora junto com o desejo da reconciliação. Tomás abre uma antiga Bíblia em latim. Mas Wesley pede:

Wesley:
— Podemos rezar... juntos... na língua do coração?

E assim, um a um, repetem com voz pausada, como se fosse a primeira vez que ouviam essas palavras:

"Pai santo, guarda-os em teu nome, para que sejam um como nós somos um..."
"Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade..."
"Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que, por sua palavra, hão de crer em mim..."
"Para que todos sejam um, como tu, Pai, estás em mim e eu em ti; que eles também estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste."

O texto termina. Mas a pergunta paira, como vento suave:

Tomás (em voz baixa):
— Onde está essa unidade hoje?

Calvino:
— Em nossos desejos?

Lutero:
— Em nossas pregações?

Wesley:
— Em nossos corações?

Tomás (olhando para o altar):
— Não. Está onde sempre esteve. Na Igreja que Ele fundou. Visível. Apostólica. Eucarística. Una.

Todos se levantam. A porta da sala se abre.

Ao longe, uma mesa posta. Uma ceia preparada. Uma cadeira com nome. Um convite silencioso. E uma promessa que ainda vive:

“Estarei convosco até o fim dos tempos.”



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